Por telefone, a filha Ana diz que vai se mudar pra Estocolmo.
- Mas lá
é tão frio, e você odeia o frio...
A proposta de trabalho parece imperdível. E Ana está ansiosa por viver num país tão civilizado. Nelson, enfim, aquiesce, com brandura.
- Vou rezar por você.
- Ué? E desde quando você reza?
Desde Chico. Ana morou um bom tempo na Inglaterra, hoje vive em São Paulo e ainda não captara as transformações sofridas pelo pai depois de ele estrelar o filme sobre o médium mais famoso do Brasil.
Nelson reconhece que desprezava esse seu lado. Desprezava, não. Desprezava é muito forte. Só achava que as coisas do espírito não pertenciam a esta vida. Quando chegasse o momento, se chegasse, ele prestaria atenção.
Ocorre que Nelson Xavier é filho de mãe espírita, que o levava ao centro de mesa branca desde que ele usava calça com bainha no joelho. "Vi materializações muito cedo." Mas aquilo lhe parecia desimportante, mesmo porque renegar a fé materna era parte sine qua non de sua autoafirmação. Ocorre também de Nelson ser casado há 22 anos com a atriz e cantora Via Negromonte, mestre de ioga, que há séculos lhe propunha meditar, meditar, meditar. "Não é uma coisa estritamente espiritual, mas é uma disciplina que ajuda, sabe?"
Ocorre ainda - e aqui Nelson pigarreia um pouco - que esse ator, autor e diretor paulistano tem câncer. Não sabe dizer há quanto tempo foi informado disso, mas o médico dera à sua mulher, em segredo, um prognóstico rápido de viuvez. O câncer, no entanto, atingiu a próstata e por ali ficou, bem administrado. "Agora, quando você tem um tipo de doença assim, procura os meios racionais, convencionais ou quaisquer outros que pintem", confessa. Quando o caminho espiritual apareceu, ele (crau!) o agarrou, isso antes do Chico. Então não é que o vidente de Pedro Leopoldo lhe caiu do céu. Quer dizer, caiu, mas ele já estava de braços abertos esperando embaixo.
Tanto que Chico Xavier foi o único papel que Nelson pediu para fazer em sua carreira de 48 filmes e pelo menos um personagem memorável, Lampião. Assim que soube do projeto do longa, em 2006, ele ligou para Daniel Filho:
- Se você achar que estou muito velho, faço uma plástica.
Daniel só retomaria a conversa em 2008, como relata o livro de Marcel Souto Maior sobre os bastidores do filme.
- Lembra aquele pedido que você me fez?
- Qual pedido?
- Bem, se ainda estiver de pé, você é o meu Chico Xavier.
Nelson disse que sim, claro. E caiu em choro compulsivo do outro lado da linha.
Na sala de seu sobrado no bairro de Santa Teresa, uma casa que está para vender e na qual o mato em volta cresce enlouquecido, Nelson se contém. Fala pausadamente, medindo as perguntas que ouve e regrando as respostas que dá. Toda essa calma também vem do Chico? "Veja pela minha risada que é ilusório", afirma, às gargalhadas. "É recolhimento, é reserva, é prudência, é medo."
Um medo de raízes ancestrais, de não conseguir sobreviver da arte, por exemplo. Já na faculdade de Direito da USP, ele achou que somente uma viagem à Europa poderia tirar essa dúvida. Não foi apenas com a cara e o pânico. Sabia falar italiano, porque assim se comunicava no Bexiga com os avós maternos. E conseguiu um estágio na Universidade de Siena, que lhe permitiu vagar por museus e afins durante dois meses, a fim de escapar do "círculo pequeno burguês" que o tolhia. Voltou decidido a fazer a Escola de Arte Dramática, onde foi aluno de Sábato Magaldi, de Luís de Lima, de Gianni Ratto, e contemporâneo de Francisco Cuoco e Miriam Mehler.
Para a primeira peça que dirigiu ainda na faculdade, convidou a mãe:
- Ô, meu filho, foi pra isso?...
Bateu-lhe o ódio, mas não o desânimo. Nelson não só terminou a faculdade como se juntou ao Teatro de Arena de São Paulo, que mambembou pelo Nordeste apresentando Eles não Usam Black -Tie (de Guarnieri), Revolução na América do Sul (de Augusto Boal) e Chapetuba Futebol Clube (de Oduvaldo Vianna Filho). A empolgação aumentou quando o grupo conheceu no Recife o Movimento de Cultura Popular, fundado por Paulo Freire e Germano Coelho, entre outros. "Eles criaram um despertador cultural, o mais bem concebido projeto pedagógico de cultura do País." Lembra que, naqueles dias, os jovens sonhavam com o voluntariado, seu horizonte era a utopia. "Hoje eles sonham com um emprego, seu horizonte é o patrão."
Nelson começou a trabalhar no seu paraíso. Escreveu o texto de Mutirão em Novo Sol, que relata os conflitos entre camponeses e criadores de gado no interior de São Paulo. O espetáculo foi um sucesso de crítica, pela direita e pela esquerda, mas o que o comove é se lembrar da apresentação da peça na ampla arena do Sítio Trindade, que ficou lotada de lavradores de Pernambuco e Paraíba. Falava-se em mais de 3 mil camponeses. "Com o tempo, que tudo amadurece, fui reduzindo esse número, temeroso de acreditar em cifras delirantes, porque os lavradores foram de fato ao delírio."
Não faz muito, o MST o procurou. Queria uma cópia do texto - "o único que fala de resistência camponesa na nossa dramaturgia" - para transformá-lo em transmissão radiofônica, a ser passada aos jovens do movimento. Nelson está sem notícia do resultado, mas recebeu o roteiro na forma de livro, um dos que moram na sua cabeceira no momento. Outros, que ele traz empilhados do quarto escada abaixo, são a biografia em quadrinhos de Tina Modotti, fotógrafa italiana que conheceu a nata da esquerda em 1920, um monólogo de Os Sertões, adaptado pelo amigo Ivan Jaf ("maravilhoso, me deu quase inveja dele"), e Príncipe e Corsário, Quase Tudo que Gaspar Dias Ferreira Escreveu sobre João Maurício de Nassau.
Do Evangelho Segundo o Espiritismo ele leu alguma coisa, mas não sistematicamente. Acha que o sucesso dos livros e películas espíritas no Brasil se explica pela importância que o País ganhou para a doutrina, especialmente depois do advento Chico Xavier. Mas destaca que, sob uma embalagem mais sutil, outros filmes nessa linha bombaram nos EUA e fora dele, como Ghost e Sexto Sentido, e agora Além da Vida. "O personagem principal tem o dom da vidência, mas considera isso uma maldição", adianta, sem que essa informação comprometa as impressões de quem ainda não viu o último em cartaz de Clint Eastwood. "Destaca-se que é o que o Chico fazia, ou seja, a comunicação."
Nelson em breve volta à telona com As Mães de Chico Xavier, em que ele faz o próprio novamente, porém mais envelhecido. Não o queria parecido com o Chico de Daniel para evitar o estigma. Comparando malemá, evita virar um Christopher Lee, que encarnou inúmeras vezes o Conde Drácula. De qualquer forma, na semana que vem, o ator aparece na tela da Globo logo depois do cármico BBB11, na microssérie Chico Xavier, extensão do filme lançado em abril de 2010, com cenas inéditas que lhe espicham uma hora de conteúdo.
Nelson sorri para a proposta. "Quando assisti pela primeira vez à versão para o cinema, fiquei meio frustradinho", diz. No longa, ele aparece quase exclusivamente no programa de entrevistas Pinga-Fogo, da TV Tupi, de 1971, em que a autenticidade de seu dom foi sabatinada por um intelectual católico, um estudioso do espiritismo e três jornalistas. Para responder a temas como sexo, drogas, pena de morte, bebês de proveta e homossexualidade, o médium sempre citava os "amigos espirituais", condizendo com o mantra de que não passava de um graveto que se confunde com o pó, uma tomada entre dois mundos, um animal em serviço, um nada.
"Chico é uma força de amor", diz Nelson, cortando esta nossa entrevista para enxugar os olhos por baixo de uma fina moldura, um contraponto aos óculos garrafais que marcaram seu personagem. Do vestuário do médium, aliás, ele ficou com um terno estilo inglês e algumas boinas, ganhos de Eurípedes Higino, filho adotivo do médium. Nelson anseia... não, anseia é muito forte. Nelson está torcendo para que a minissérie inclua uma cena em que ele, Chico, toma chá com uma amiga assistente. "É uma tomada longa, de um plano só, fiquei feliz com ela na ocasião." Mas Nelson diz que não é de sua alçada julgar isso. Cruza as pernas lentamente mais uma vez, deixando um Croc cochilar sobre o outro, apesar do ronco dos aviões a caminho do aeroporto, que faz tremer o casarão. "Eu fiz a cena, agora a avaliação não é minha."
Mônica Manir - O Estado de S.Paulo
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